Como produto de trabalho escravo vai parar na sua calçada
12/04/2025
(Foto: Reprodução) Empresas já firmaram pelo menos 200 contratos públicos de pavimentação pelo país nos últimos cinco anos. Dentre as cidades com contratos está Taperoá (PB), retratada nos filmes 'O Auto da Compadecida 1 e 2'. Trabalhador mostra pedra cortada em uma pedreira em Caiçara, interior da Paraíba; para Ministério do Trabalho e Emprego, ele estava sob condição análoga à escravidão
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Em O Auto da Compadecida 2, continuação lançada no fim de 2024 de um dos grandes sucessos do cinema brasileiro, um dos vilões, candidato a prefeito de Taperoá, interior da Paraíba, faz planos para comprar votos da população empobrecida e, ao ganhar, asfaltar a estrada "até a capital do Estado, só para chegar ao Palácio sem sujar o pneu".
A história da Taperoá dos filmes, inspirada na obra de Ariano Suassuna, se passa há quase um século. Mas guarda semelhanças com a cidade da vida real ainda no presente.
O município, com 14 mil habitantes e indicadores sociais abaixo da média nacional, ainda possui uma parte de suas ruas sem pavimentação.
Não à toa o asfaltamento segue sendo uma bandeira da política local. Nos últimos anos — inclusive em 2024, de eleições municipais — gestores têm firmado diversos contratos de pavimentação e divulgado as obras nas redes sociais.
Moradores comemoram os avanços. "Moro aqui há 40 anos e sempre foi tudo terra. Um problema para sair de casa, uma lama danada", contou à BBC News Brasil o aposentado Sebastião de Gouveia, de 72 anos, cuja rua começou a ser pavimentada pela primeira vez.
Mas essa corrida deixou um rastro de abusos contra trabalhadores da região.
Ao menos duas empresas contratadas para executar obras públicas de calçamento na cidade usaram pedras extraídas por trabalhadores em situação análoga à escravidão, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Essas pessoas trabalhavam sob o sol intenso sem proteção, sem acesso à água potável, banheiro, área de descanso ou cozinha — elementos que demonstraram, para as autoridades, "situação degradante".
Morador de Taperoá, na Paraíba, Sebastião de Gouveia viu a rua em que mora ser pavimentada pela primeira vez
Vitor Serrano/BBC News Brasil
"Todo mundo pensa na calçada, mas não na nossa condição", disse à BBC News Brasil um trabalhador de uma pedreira da zona rural da cidade, desativada no ano passado após fiscalização.
Esta reportagem, conduzida nos últimos quatro meses, identificou que, assim como em Taperoá, cidades de pelo menos oito Estados brasileiros podem ter se beneficiado de produto do trabalho escravo contemporâneo na pavimentação de suas ruas.
Entrevistas com trabalhadores, representantes de construtoras, pesquisadores, auditores fiscais e órgãos públicos revelam um padrão: construtoras compram pedras pelo menor preço, sem verificar a origem, para vencer licitações. Prefeitos e outros gestores, por sua vez, ganham visibilidade ao entregar mais ruas pavimentadas — especialmente em municípios menores.
Empresas ligadas a abusos já venceram disputa por mais de 200 contratos públicos de pavimentação
A BBC News Brasil obteve e organizou todos os relatórios públicos de fiscalização sobre trabalho análogo à escravidão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) relacionados às pedreiras de onde são extraídas as pedras do tipo paralelepípedo para calçamento.
A reportagem também visitou pedreiras, acompanhou operações de resgate de trabalhadores e identificou as conexões desses empreendimentos com o poder público.
O levantamento encontrou contratos públicos de pavimentação firmados com ao menos 31 empresas que já foram autuadas administrativamente por trabalho análogo à escravidão ou que compraram pedras de empreendimentos já autuados, segundo documentos oficiais.
Juntas, essas empresas assinaram ao menos 200 contratos de obras públicas nos últimos cinco anos, abrangendo municípios do interior do Piauí, Paraíba, Bahia, Rio Grande do Norte, Alagoas, Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Sul.
Não é possível afirmar, no entanto, só com base nos documentos, quantas e quais obras fizeram uso das pedras extraídas por trabalhadores em situação degradante.
Parte dos recursos utilizados nesses contratos tem origem federal, provenientes de emendas parlamentares e convênios com a Caixa Econômica Federal, que abastecem os cofres dos municípios.
Governos locais, então, contratam as construtoras que oferecem o menor preço, e essas empresas terceirizam a busca por pedras em regiões isoladas e socialmente vulneráveis.
Em um dos casos, um empresário obteve contratos com o governo estadual para obras de pavimentação na cidade onde o pai dele exerce o cargo de prefeito há quatro mandatos. As pedras utilizadas vinham de uma pedreira que, segundo depoimentos colhidos por auditores fiscais, estaria sob responsabilidade do próprio prefeito.
Em outro, uma construtora com contratos milionários com o governo do Piauí comprou pedras de uma pedreira autuada por uso de trabalho escravo. O sócio da empresa, figura conhecida no setor, se tornou réu neste ano por conta dos achados da operação.
Já uma terceira construtora, com histórico de mais de meio bilhão de reais em contratos públicos com o governo federal e autuada por trabalho análogo à escravidão na década passada, voltou a ser citada em um relatório recente. Os sócios são parentes de um senador. Segundo o documento, a empresa, que não foi autuada, estaria ligada à cadeia produtiva de uma pedreira onde trabalhadores foram encontrados em condições degradante.
Marretas, explosivos caseiros e técnicas de 'antes de Cristo': como as pedras chegam às calçadas?
Pedras são quebradas de forma manual, sem equipamentos de proteção
Vitor Serrano/BBC News Brasil
O trabalho nas pedreiras de onde vêm as pedras usadas em calçadas públicas — como as de Taperoá, na Paraíba — é quase todo manual. Depende da força humana, com apoio de marretas e explosivos caseiros.
Os autos de infração analisados pela BBC News Brasil apontam que esse processo produtivo "remonta a técnicas rudimentares utilizadas desde a antiguidade" e "envolve o uso de ferramentas semelhantes às usadas desde a Idade do Ferro, mais de mil anos antes de Cristo".
Essas pedreiras funcionam como empreendimentos informais, sem qualquer direito trabalhista garantido. As condições de trabalho são precárias. Em visitas da reportagem, foi comum ver trabalhadores usando apenas camiseta, bermuda ou calça e chinelos. Não há equipamentos de proteção individual, o que contribui para a ocorrência frequente de acidentes.
"Uma lasca cortou a minha perna e tive que estancar o sangue com um cordão. Me levaram de moto para o hospital. Mas já vi coisa pior, como gente perdendo a mão em explosão", contou à reportagem um homem de 27 anos, que diz trabalhar em pedreiras desde os 18 e foi resgatado durante uma operação de fiscalização. Mesmo após o resgate, ele afirma que pretende continuar no ofício: "É a minha profissão, é o que sei fazer. Não tive outra oportunidade."
Em março, a BBC News Brasil acompanhou uma ação em Caiçara (PB), que resgatou trabalhadores em situação considerada pelos auditores fiscais como análoga à escravidão. Eles recebiam por produção — cerca de R$ 600 a cada 1 mil pedras cortadas — em dinheiro. Parte desse valor era descontado para cobrir custos do próprio trabalho, como a compra de ferramentas, alimentação e o uso de compressores para perfuração das rochas.
O local de trabalho é quase sempre uma área rural, cedida pelos proprietários mediante acordos informais. Pode haver cobrança de um valor fixo mensal, de uma porcentagem sobre as vendas ou outro tipo de negociação.
O trabalho escravo contemporâneo, vale ressaltar, não está necessariamente ligado à falta de remuneração ou restrição de liberdade, mas também às condições degradantes. Elementos que podem caracterizar essa violação trabalhista são, por exemplo, falta de água potável, banheiro e alojamento precários.
Trabalhadores em pedreiras montam barracos improvisados para descansar, comer e até passar a noite
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Apesar da presença comum de um gerente que organiza a produção, bem como de jornadas que frequentemente ultrapassam oito horas por dia, não há reconhecimento de vínculo empregatício. Os trabalhadores não são registrados. Um deles disse a uma das auditoras fiscais: "Décimo terceiro? Não sei nem o que é isso não, moça."
Há também o discurso recorrente de que "ninguém é obrigado" e que todos podem ir e vir quando quiserem, além da ideia de que não há um único beneficiário do trabalho — já que, supostamente, os compradores de pedras são variados.
Mas a fiscalização tem revelado outro cenário: em diversas autuações, pedreiras foram encontradas funcionando exclusivamente para uma única construtora ou obra ou até mesmo sob supervisão de representantes dessas empresas.
O caminho das pedras paralelepípedo até chegar às calçadas públicas
BBC News Brasil
A demanda por pedras é constante, especialmente para pavimentação em cidades do interior. Construtoras interessadas em oferecer o menor preço em licitações públicas costumam ignorar as condições de trabalho nas pedreiras com as quais negociam. As prefeituras, por sua vez, não rastreiam a origem das pedras ao contratar essas construtoras.
As transações entre as empresas e quem extrai e vende a pedra são quase sempre informais, sem emissão de nota fiscal. Os pagamentos, muitas vezes, são feitos em dinheiro vivo.
Trabalhadores preparam almoço em fogão improvisado, após chegada da equipe de fiscalização em pedreira em Caiçara, na Paraíba
Vitor Serrano/BBC News Brasil
A histórica disputa por calçadas na terra de Chicó e João Grilo
Mural na entrada de Taperoá, na Paraíba, faz referência aos personagens Chicó e João Grilo, de O Auto da Compadecida
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Taperoá, no sertão da Paraíba, costuma ser lembrada pela relação com O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Embora os filmes baseados na obra não tenham sido gravados ali, é nessa cidade que a história se passa — e foi lá também que Suassuna passou parte da infância.
A cidade de Taperoá, na Paraíba
BBC News Brasil
Políticos locais frequentemente se apropriam desse simbolismo. Em 2024, ano de eleição municipal, o ex-prefeito e então candidato Jurandi Gouveia Farias apareceu caracterizado como João Grilo (interpretado no cinema por Matheus Nachtergaele) em um vídeo de divulgação eleitoral.
Um outro homem, que imitava Chicó (interpretado por Selton Melo no telão), anunciou uma convenção como "um dia de alegria para apresentar nosso Jurandi arretado, que vai enfrentar essa luta todinha". As encenações da dupla se repetiram em propagandas oficiais da campanha eleitoral.
O ex-prefeito Jurandi Gouveia (à esquerda) interpreta um personagem de O Auto da Compadecida em um vídeo divulgado nas redes sociais
Reprodução/Facebook
João Grilo e Chicó, personagens centrais da ficção, encarnam um arquétipo do sertanejo nordestino retratado na obra de Suassuna: homens comuns, explorados por patrões em subempregos mal remunerados e por políticos da região, que dependem da astúcia e do improviso para sobreviver.
Jurandi reforçou, em sua campanha, essa imagem de figura popular, a começar por seu nome de urna: Jurandi do Povo. Jurandi Gouveia Farias, na Taperoá da vida real, é empresário e político, com um histórico de idas e vindas com a Justiça Eleitoral que abreviaram seus mandatos.
Foi cassado em 2013 após acusações que envolveram concessão e retirada de bônus a servidores conforme o partido que apoiavam, distribuição de material de construção com fins eleitorais, dentre outros, segundo informado pela Justiça Eleitoral.
Ele conseguiu reverter a decisão em recursos e o caso foi arquivado. Em resposta à BBC News Brasil, disse que as denúncias eram sem fundamento: "Sempre trabalhei com honestidade e total transparência".
De volta ao cargo, houve outro processo por irregularidades, que incluiu acusações de captação ilícita de sufrágio (compra de votos) e decisão por cassação em 2019. Desta vez Jurandi não conseguiu reaver o cargo, mas teve a decisão parcialmente reformada após recurso ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que manteve seus direitos políticos.
Desde 2021, quem ocupa a prefeitura é George Farias (PSDB), reeleito em 2024. Embora tenha o mesmo sobrenome, não é parente de Jurandi. A família Farias, no entanto, tem longa presença na política local: o pai de George, Mandu Farias, foi prefeito; dois irmãos, Adriano Monteiro e Luiz José (o Lula de Mandu), também governaram a cidade.
Adesivos da campanha de George Farias, reeleito prefeito em 2024, ainda são vistos em casas de Taperoá, na Paraíba; a foto foi feita em março de 2025
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Das emendas parlamentares às calçadas
Tanto Jurandi quanto George destacaram o tema da pavimentação no ano eleitoral de 2024.
George comemorou em seu Facebook o recebimento de recursos vindos de emendas parlamentares destinadas, segundo o prefeito, por dois senadores, Veneziano Vital e Efraim Filho, que seriam usados para o calçamento de ruas.
Prefeito George Farias, de Taperoá (PB), comemora recebimento de recursos para obras de pavimentação em sua conta no Facebook
Reprodução/Facebook
Já Jurandi, em um debate entre os candidatos a prefeito, se apresentou como "o Jurandi que fez as grandes obras de Taperoá, que abriu as grandes ruas".
Foi neste ano de obras nas ruas e promessas que uma operação do Ministério do Trabalho e Emprego flagrou duas empresas contratadas para obras de pavimentação da prefeitura ligadas a casos de trabalho análogo à escravidão.
Em um dos casos, os trabalhadores ficavam na pedreira das 6h às 17h e lá produziam até 1,5 mil pedras por semana. Eles descansavam em um barraco, onde também faziam as refeições, com um fogão improvisado, segundo o documento.
Relatório de fiscalização apontou que trabalhadores improvisavam um fogareiro com pedras para preparar as refeições, que eram cozinhadas ao relento, sem estrutura adequada. A área ao redor do barraco também servia para armazenar alimentos e materiais diversos, incluindo uma forjaria de ferramentas improvisada
Ministério do Trabalho e Emprego via BBC
O dono do sítio em que ficava a pedreira admitiu ser o responsável pela produção dos trabalhadores e foi autuado.
Pedras lá extraídas eram repassadas à H&G Construtora, que então usava o material em obras de pavimentação do município, segundo o relatório de fiscalização.
Obra na rua Nossa Senhora da Conceição, em Taperoá, que é citada no relatório que multou pedreira e identificou a H&G Construtora como compradora das pedras
Vitor Serrano/BBC News Brasil
A H&G é de propriedade de Antonio Hilario de Gouveia, que já apareceu em fotos nas redes sociais com materiais de campanha e abraçado com o ex-prefeito Jurandi Gouveia em 2016 - não foi possível confirmar se eles são parentes. Assim como os Farias, o sobrenome Gouveia é bastante comum na região.
Jurandi não respondeu se possui relação com o empresário. Também não foram encontradas informações no site da prefeitura de contratos estabelecidos durante suas gestões na cidade – os dados mais antigos são de 2022, quando George Farias já havia assumido o cargo de prefeito.
Antonio Hilario de Gouveia foi procurado, mas não respondeu às mensagens enviadas pela reportagem.
Os senadores Veneziano Vital e Efraim Filho foram procurados por e-mail, mas não se manifestaram.
O ex-prefeito Jurandi Gouveia e o empresário Antonio Hilario de Gouveia, em foto publicada no Facebook em 2016
Reprodução/Facebook
Prefeito de Taperoá, George Farias visita rua que está recebendo pavimentação e fala com moradores; material foi divulgado em suas redes sociais
Reprodução/Facebook
A segunda empresa autuada, Construtora Apodi Ltda, teve contrato de R$ 1 milhão assinado em setembro do ano passado, com recursos de um convênio com a Caixa Econômica Federal, via Ministério das Cidades. O recurso, segundo o banco, ainda não foi liberado.
O convênio prevê que a prefeitura deve checar a regularidade dos contratos e trabalho pelas empresas prestadores de serviço. Não especifica, no entanto, se essa fiscalização deveria se estender à origem do material usado na obra.
Os trabalhadores da pedreira que fornecia as pedras à Construtora Apodi tomavam banho com baldes de água e não dispunham de banheiro ou cozinha, segundo o MTE.
Um dos trabalhadores lá resgatados contou à reportagem que já viu até cobra no alojamento em que ele dormia, que não tinha qualquer tipo de proteção.
Fiscalização apontou que não havia estrutura adequada para armazenagem, preparo, conservação e consumo das refeições; os alimentos eram mantidos ao ar livre e em cima dos blocos de pedras
Ministério do Trabalho e Emprego
Quando os fiscais descreveram a situação dele como a de um escravo, ele não estranhou. "A gente tinha uma condição muito ruim. Mas precisava do trabalho", disse ele em entrevista à BBC News Brasil, um ano depois de ter sido resgatado.
A assinatura de contrato com a Construtora Apodi aconteceu em setembro de 2024, segundo o portal da transparência da cidade. Foi assinado, portanto, depois da fiscalização, que aconteceu em um sítio na zona rural da cidade em junho do mesmo ano.
Onze trabalhadores em situação degradante foram resgatados. O auto de infração destacou que "toda a destinação do fruto de trabalho da mão de obra encontrada na pedreira era em benefício final à administração pública".
Quando a Caixa soube, pela BBC News Brasil, sobre o registro de trabalho análogo à escravidão, informou que "será emitida comunicação formal ao município para que tome conhecimento da situação e apresente as providências adotadas, atestando a regularidade e legalidade da contratação." Já o Ministério das Cidades diz que o processo licitatório é de inteira responsabilidade dos municípios.
A Prefeitura de Taperoá disse, em nota, que não recebeu nenhuma notificação oficial das infrações e afirma que segue rigorosamente a legislação.
O prefeito de Taperoá, George Farias, não deu entrevista. Sua assessoria disse que ele estava fora da cidade.
Em entrevista à BBC News Brasil, o assessor jurídico do município Danilo Leite disse ainda que tomou conhecimento dos casos somente após o contato da reportagem, em março deste ano - os casos aconteceram em 2024, há quase um ano. Reforçou que não há qualquer impedimento legal no momento para a contratação das empresas, mas que a gestão não compactua com trabalho análogo à escravidão.
José Alexandre Sousa Rodrigues, proprietário da Construtora Apodi, disse que "jamais utilizou em suas obras material oriundo de fontes escusas" e que repudia a tentativa de vincular a imagem de uma empresa séria "a um ato tão repugnante como o trabalho escravo."
A reportagem questionou se ele discordava do auto de infração e dos achados dos auditores fiscais do trabalho, mas ele não comentou os pontos específicos do documento.
Relatório de inspeção apontou falta de banheiro e chuveiros
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
Dono de construtora autuada tem contratos para pavimentar cidade em que o pai é prefeito em quarto mandato
"Como eu sou um cara privilegiado por ser filho do meu pai. De um cara que é trabalhador, um cara que inspira pessoas, que é um líder que te motiva, te cativa", disse o empresário Eduardo Alves Carvalho Filho em um vídeo publicado em sua conta no Instagram, em julho de 2024.
Eduardo Filho é empresário, sócio de uma construtora que tem no currículo recente a execução de obras públicas.
O pai homenageado no vídeo é Eduardo Alves Carvalho, atual prefeito de Regeneração que está em seu quarto mandato. A cidade fica no interior do Piauí, a cerca de 150km da capital Teresina.
O depoimento do vídeo segue: "como filho de Regeneração, é muito bom ter um gestor tão preocupado com sua terra. Um cara que tira do dele para dar para quem mais precisa e você vê que é de coração."
Eduardo Filho, empresário (à esquerda), ao lado do pai, Eduardo Alves Carvalho, o Seu Dua, que é prefeito de Regeneração, no Piauí
Reprodução/Instagram
Mas o laço familiar não é a única coisa que liga Eduardo, o filho, à pequena cidade do Piauí, de 17 mil habitantes.
A Jaicó Construtora e Distribuidora, que ele comanda, firmou contratos com órgãos do governo do Estado para realizar obras no mesmo município.
Foi em uma pedreira usada pela construtora para obter pedras que uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego encontrou, em maio de 2023, trabalhadores alojados em um barraco improvisado e que lá cortavam o material diariamente, inclusive aos finais de semana.
A equipe preparava suas refeições em uma cobertura de lona e os alimentos ficavam pendurados em sacolas nos galhos das árvores ou soltos pelo chão. Não havia banheiros para os funcionários nem chuveiros. Também não era oferecida água potável.
Eduardo Filho disse aos auditores, após a fiscalização, que naquele momento estava executando a obra do calçamento do distrito do Jacaré, na cidade administrada pelo pai, para onde as pedras produzidas pelos trabalhadores da pedreira fiscalizada estavam sendo levadas.
A empresa tinha contrato firmado com a Agência de Desenvolvimento Habitacional do Piauí (ADH), em 2022, no valor de R$ 765 mil. O órgão é vinculado ao governo do Estado, não ao município.
A fiscalização indicou que os trabalhadores na pedreira eram de outras cidades e, por causa da distância, estavam morando em barracos improvisados nas redondezas da pedreira. Por este caso, a Construtora Jaicó passou a integrar a lista suja do trabalho escravo.
Depois da autuação, outros contratos com o Estado, sob gestão do governador Rafael Fonteles (PT) e do secretário de Transportes Jonas Moura, foram assinados.
O Portal de Transparência do Piauí registra ao menos mais dois, de 2024, ambos com a Secretaria dos Transportes (Setrans), que somam R$ 4 milhões, sendo o maior contrato para outra obra de pavimentação em Regeneração.
Local de preparo das refeições da pedreira em Regeneração (PI), segundo imagem tirada por auditores fiscais do trabalho
Ministério do Trabalho e Emprego/Reprodução
O relatório de fiscalização também coloca em dúvida se o filho é o responsável pela pedreira.
Trabalhadores resgatados disseram que trabalhavam para o "Sr. Dua", nome pelo qual o prefeito de Regeneração, Eduardo Alves Carvalho, é conhecido.
Afirmaram que ele é quem "contratava os trabalhadores, emanava ordens, controlava os serviços executados, retirava o material produzido e efetuava os pagamentos dos salários."
Um trabalhador disse que "todas as pedras são aplicadas em obras próprias" e que o prefeito "mexe há bastante tempo com calçamentos e que esses serviços são de conhecimento de todos os moradores da região."
Um encarregado disse à fiscalização que, a cada pagamento aos trabalhadores, ia à casa do prefeito e pegava o dinheiro em espécie correspondente aos valores produzidos pela equipe.
O filho e dono da empresa negou às autoridades que o pai tivesse relação com a pedreira e disse que ele "apenas lhe auxilia em alguma atividade do dia a dia." Afirmou também que não se via como patrão dos trabalhadores, mas sim que apenas comprava as pedras deles.
Em depoimento ao Ministério do Trabalho e Emprego, trabalhador da pedreira diz que prefeito seria o verdadeiro responsável pela empresa de calçamento
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
O Piauí é o Estado que mais aparece no levantamento da BBC News Brasil. A reportagem encaminhou ao governo do Estado uma lista com nove construtoras que possuem contratos públicos e que foram autuadas ou que compraram pedras extraídas por trabalhadores considerados em situação análoga à escravidão.
Em nota, o governo do Estado disse que não possuía informações detalhadas sobre a origem dos materiais utilizados pelas empresas no momento da celebração do contrato, mas que tem intensificado as medidas de controle sobre as empresas, entidades e instituições contratadas, "visando a aumentar a segurança e a transparência na entrega de produtos e na execução de serviços."
Afirmou ainda, sobre o caso em Regeneração, que "os critérios de seleção dos fornecedores de bens e serviços do Estado são objetivos e impessoais, ou seja, independem de grau de parentescos, em estrita consonância com a lei geral de licitações."
Por fim, informou que quando a empresa é habilitada a participar do certame, a administração estadual "não tem poder legal para vetar sua participação, em cumprimento aos princípios da legalidade e impessoalidade."
Eduardo Filho disse, por telefone, que "foi tudo esclarecido e não há nada de trabalho escravo, longe disso" e então pediu que a entrevista acontecesse em outro horário, pois estava dirigindo. Depois, não atendeu mais às ligações.
O prefeito Eduardo Carvalho, o Seu Dua, não respondeu aos pedidos de entrevista.
Construtora com mais de 60 contratos com Estado comprou de pedreira flagrada com trabalho escravo; sócio vira réu
Outra ação no Piauí, também de 2023, identificou que sete trabalhadores de uma pedreira dormiam em um alojamento improvisado e ganhavam de acordo com a quantidade de pedras que produzissem. O caso também foi enquadrado como análogo à escravidão pelo MTE.
Os fiscais identificaram que pedras lá produzidas foram compradas por uma conhecida construtora no Estado, a Construtora Renata.
O relatório afirma que "todos os trabalhadores" da pedreira atuavam em proveito da empresa.
No Portal de Transparência do Estado do Piauí há dezenas de contratos de obras públicas em nome desta construtora, que somam mais de R$ 200 milhões em recursos públicos - mais da metade em 2024, ano seguinte à fiscalização, feita entre fevereiro e março de 2023. Parte desse recurso tem como origem convênios com a Caixa Econômica Federal, segundo informações do site público.
Não é possível afirmar, pelos documentos do MTE, qual foi a destinação específica das pedras compradas da pedreira fiscalizada.
O relatório da fiscalização afirmou que os trabalhadores resgatados identificaram Lourival Nogueira de Araújo Filho, sócio da construtora, como responsável pela pedreira e que ele já esteve no local "para verificar as condições da pedreira". O documento diz que os pagamentos pelas pedras eram feitos em dinheiro, por quinzena, sem notas fiscais.
A equipe também encontrou no local uma pá carregadeira e um caminhão que pertenciam à construtora.
Equipe de fiscalização diz ter encontrado equipamentos da construtora na pedreira
Ministério do Trabalho e Emprego/Reprodução
"Não se tratava de uma simples compra e venda de pedras", diz o relatório. "Entende-se que a empresa Construtora Renata Ltda é a responsável direta pelas relações trabalhistas caracterizadas e pelas consequências jurídicas que delas decorrem."
Com base nas evidências da fiscalização, o auto de infração saiu em nome da própria construtora.
O caso teve desdobramentos distintos na Justiça.
A Construtora Renata, pessoa jurídica, não entrou para a 'lista suja' do trabalho análogo à escravidão, que é uma relação divulgada semestralmente pelo governo federal com os nomes de pessoas e empresas autuadas.
Isso porque obteve, em janeiro deste ano, uma decisão na Justiça do Trabalho que suspendeu as multas recebidas.
O juiz do trabalho Ferdinand Gomes dos Santos reconheceu que a inclusão do nome da construtora na lista suja "tem potencial de causar prejuízos de difícil reparação, especialmente pela impossibilidade de contratar com o Poder Público, o que poderia comprometer a viabilidade econômica."
A construtora diz nos autos que nega ter qualquer controle sobre a pedreira e seus trabalhadores, e que teve apenas uma "relação estritamente comercial de compra de pedras", sem vínculo com os funcionários.
A empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ato que representou, para o juiz do trabalho, "boa-fé e colaboração com as autoridades de fiscalização do trabalho."
A decisão de suspensão das multas foi contestada neste ano pela União, que pede a manutenção da punição e reforça seu caráter "pedagógico", que poderia desestimular condutas similares de outras empresas. Ainda não houve sentença definitiva sobre o caso.
Relatório do Ministério do Trabalho e Emprego destaca falta de equipamentos de proteção
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
Já o sócio da construtora, Lourival Filho, bem como o gerente da pedreira, Domingos Cardoso dos Santos, passaram a responder pelo caso na esfera criminal, ainda sem decisão definitiva.
Um inquérito foi aberto pela Polícia Federal ainda em 2023, ano da operação na pedreira, para apurar o caso. Uma denúncia foi oferecida pelo Ministério Público Federal com base nos achados da fiscalização e aceita pela Justiça em março deste ano.
Lourival Filho repetiu à BBC News Brasil, por telefone, os argumentos que sua defesa havia apresentado à Justiça: de que só fez uma compra de pedras e que não possui qualquer relação com a pedreira ou com os trabalhadores lá encontrados em situação degradante. "Já foi resolvido. Meu nome não foi para a lista (do trabalho escravo), não sou tirador de pedra, não sou operador de pedreira", disse.
Ele acredita que será inocentado no processo criminal. "Se eu já estou sendo absolvido (na Justiça do Trabalho), vai servir para poder provar que eu não tenho nada a ver com isso."
Domingos Cardoso não se manifestou.
Um outro relatório de fiscalização, este de 2022, encontrou trabalhadores em situação análoga à escravidão nas pedreiras Areia e Monge Velho, em Amarante, também no Piauí.
O dono do estabelecimento disse que tinha vendido, naquele ano, pedras para a Construtora Jurema Ltda, cujos sócios são João Costa e Castro e João Eduardo Chaves Castro - irmão e sobrinho do senador Marcelo Castro (MDB-PI), respectivamente.
O autuado, neste caso, foi uma pessoa física que comandava a pedreira. A Jurema é citada no documento somente como parte da cadeia de produção e compradora de 74,8 mil pedras, mas não houve multa para a empresa. A Jurema já integrou a lista suja do trabalho escravo na década passada, depois de uma operação ter identificado, em 2011, condições precárias de trabalhadores que faziam a limpeza de vegetação em uma rodovia.
A Construtora Jurema, em nota, ressaltou que não existem processos administrativos contra a empresa no MTE e disse que nunca comprou essas pedras, apesar de a equipe de fiscalização do órgão citar, no relatório, nota fiscal da transação.
Já sobre o caso de 2011, disse que foi absolvida de qualquer acusação. Disse ainda que "repudia veementemente qualquer prática relacionada ao trabalho análogo à escravidão e reforça seu compromisso com o respeito aos direitos humanos, à legislação trabalhista e à responsabilidade social em toda a sua cadeia de fornecimento."
O senador Marcelo Castro disse, em nota, que "repudia veementemente qualquer forma de trabalho análogo à escravidão e reitera seu compromisso com os direitos trabalhistas e o combate a essa prática". Ele reforça ainda que não possui qualquer relação com a gestão ou operação das empresas mencionadas.
Sem opção de renda, trabalhadores querem voltar às pedreiras e até se irritam com operação
Representantes de pedreiras se reuniram na frente do prédio do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em Campina Grande, e reclamam de operações
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Quando um trabalhador é resgatado de condições análogas à escravidão, o primeiro passo é afastá-lo imediatamente do serviço e calcular os direitos trabalhistas devidos pelos ex-empregadores. Em seguida, emitir o seguro-desemprego específico que ele passa a ter direito, no valor de um salário-mínimo, por três meses.
O período pós-resgate é um desafio para as autoridades. Sem alternativas para se sustentar, parte dos trabalhadores acaba retornando ao mesmo empregador ou buscando outros em condições similares.
A BBC News Brasil acompanhou em março o processo pós-resgate de um grupo de trabalhadores de uma pedreira, em um prédio do Ministério Público do Trabalho em Campina Grande (PB).
Logo na entrada do prédio havia um protesto: pessoas que reclamavam que a ação do MTE paralisaria as atividades de outras pedreiras na região, com medo de que outras operações pudessem acontecer.
Dentre os presentes estavam representantes de pedreiras, vereadores da região e cortadores de pedra. O grupo foi recebido por uma procuradora do trabalho, que explicou que o objetivo das autoridades não era prejudicar ninguém, mas sim regularizar as condições de trabalho.
Um dos cortadores, que trabalhava em uma pedreira vizinha à do resgate e que pediu para não ser identificado, disse à reportagem que "só queria continuar a trabalhar", embora reconhecesse que suas condições de trabalho eram ruins. Um colega que o acompanhava dizia que não concorda com o termo "escravo". "Ninguém ia por obrigação, a gente vai porque quer e porque precisa".
Mesmo entre os resgatados o discurso sobre permanecer no mesmo ofício se mantinha. "Eu só sei fazer isso e vou continuar", disse um deles.
"No fim das contas há um ciclo de exploração da miséria dessas pessoas", diz a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski. "Infelizmente alguns voltam por falta de opção".
Representante de construtora diz que clientes não cobram informação sobre origem das pedras
Pedreira desativada em Taperoá, na Paraíba. Este local era usado para descanso e preparo de refeição dos trabalhadores
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Jorge Ramos, representante da Construtora Realizar, que comprou pedras de uma pedreira flagrada com trabalho escravo contemporâneo em Taperoá, na Paraíba, alega que só as multas não resolvem o problema e que toda a cadeia de produção deveria ser responsabilizada.
"Deveria vir de cima pra baixo, não de baixo para cima. Se você tem um contrato vinculado com município, Estado ou governo federal, e todas essas entidades estão cientes que, para execução de vias com paralelepípedos, vai ter retirada na pedreira, por que isso não é fiscalizado? Se tem a demanda, vai continuar tendo, não tem como. Vai continuar existindo".
Para ele, os preços praticados neste mercado são "horríveis" e quem acaba pagando por isso é o trabalhador. "É realmente algo duro de se ver (o trabalho em pedreiras). A empresa não concorda com esse tipo de situação, mas infelizmente é a situação que a região tem como disponível. Nós temos onde adquirir pedra de forma correta, mas quando falta, procuramos outros locais", diz ele, que afirma haver também o uso de "atravessadores" neste mercado, que levam as pedras diretamente para as obras.
"Não sei nem de onde vem. A gente quer o produto. E não tem exigência, por parte do ente contratante, [para saber] de onde vem, a finalidade. Não nos é cobrado isso."
'O próximo passo é responsabilizar também as prefeituras e os órgãos públicos que contratam as obras'
A auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que é coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)
Vitor Serrano/BBC News Brasil
Especialistas ouvidos pela reportagem suspeitam que o principal destino do material são as obras públicas — tese reforçada pelos dados e documentos agora organizados pela BBC News Brasil — e que praticamente todos esses fornecedores atuam de forma irregular.
"A maior parte dessas pedreiras opera ilegalmente, tanto em relação à licença ambiental quanto no que tange à regularização fiscal e trabalhista", diz a auditora fiscal do trabalho Gislene Stacholski, que investiga a situação de trabalhadores em pedreiras há pelo menos quatro anos.
A auditora conta que as operações mais recentes têm o objetivo de alcançar o topo da cadeia produtiva, indo além de apenas buscar as irregularidades trabalhistas específicas das pedreiras. Ressalta, no entanto, que apenas recentemente foi possível rastrear para onde essas pedras estão indo.
"O próximo passo é responsabilizar também as prefeituras e os órgãos públicos que contratam as obras".
Um desafio, explica, é que a relação das construtoras com as pedreiras é quase sempre informal, sem apresentação de notas fiscais ou documentos de movimentação de materiais.
Por isso, sempre que consegue identificar a construtora, a fiscalização atua tanto na pedreira quanto na obra de pavimentação.
"Estamos flagrando trabalho escravo nas duas pontas, tanto na extração quanto na aplicação das pedras. E constatando que todos esses serviços são em prol de algum órgão público, que contrata as obras, em sua maior parte, de calçamento de ruas de cidades do interior. As prefeituras não fiscalizam a origem das pedras, a condição de trabalho, se a pedreira é legal e também não exigem nada".
A auditora já vinha dizendo que essa exploração dos trabalhadores em pedreiras deveria aumentar durante as eleições em 2024, conforme entrevista publicada no site Brasil de Fato, justamente pelo maior número de obras em andamento.
Para ela, uma forma de combater a prática é com o envolvimento de todos os outros atores institucionais, como o Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e as próprias prefeituras e governos estaduais.
"Se continuarem contratando, usando como critério apenas o melhor preço, vai ser sempre esse tipo de contratação de mão de obra. A própria administração pública acaba fomentando essa situação", acrescentou ela.
'É mais provável que trabalhadores sejam presos por crime de furto do que um empregador por escravizar pessoas'
Não há hoje impedimento legal dessas contratações pelo poder público, mesmo depois de uma operação que flagra as condições análogas às de um escravizado.
Também não existe qualquer controle oficial das cadeias de produção das pedreiras.
Quando uma empresa ou pessoa é autuada, esta recebe uma punição administrativa, que pode ou não resultar em ação judicial.
O nome do empreendimento é então incluído, por dois anos, na chamada Lista Suja, um cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão.
Também é possível que os responsáveis pela empresa sejam responsabilizados, como pessoas físicas, na esfera criminal.
A inclusão na lista é vista como um dano à imagem da empresa, mas não impede a participação em disputas públicas por obras.
A Lei de Licitações e Contratos Administrativos, de 2021, diz que somente os empreendimentos com condenações judiciais com trânsito em julgado (sem opção de recursos) ficam impedidos de participar de certames públicos — o que, segundo especialistas, é raríssimo e o processo pode se arrastar por anos.
A lei é vista com ressalva por quem tem experiência nos resgates justamente por não garantir punição em certames públicos.
"A nova lei de licitações trouxe apenas uma ideia de proteção aos direitos humanos ao inserir a proibição de contrato com quem explora trabalho escravo, pois direcionou a proibição pelo caminho mais difícil, por onde há menos responsabilização. Faltou um olhar para a realidade do combate ao trabalho escravo no Brasil no momento de elaboração do projeto de lei", diz o auditor fiscal do trabalho e pesquisador Mauricio Krepsky.
O mais comum é que a empresa autuada pague os direitos trabalhistas do flagrante pontual, faça um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) se comprometendo a não mais contratar esse tipo de mão de obra e então encerrar o caso.
Não é raro, inclusive, que continue sendo contratada pelo poder público logo depois de uma fiscalização constatar o uso de mão de obra em condição degradante.
O TAC é também uma forma de proteger os trabalhadores, garantir que sejam pagos e exigir algum tipo de regularização da empresa autuada.
Com isso, o que acontece, na prática é um jogo de empurra, em que envolvidos na cadeia de produção evitam se responsabilizar por fiscalizar as condições dos trabalhadores que produzem as pedras.
Os gerentes das pedreiras, que frequentemente nem sequer são donos do terreno e que operam empreendimentos informais, sem um CNPJ, negam qualquer responsabilidade pelos trabalhadores e os consideram apenas como prestadores de serviço independentes.
Já as construtoras dizem, quando flagradas, serem apenas clientes das pedreiras e que não têm qualquer relação com o que acontece no local.
As prefeituras dizem que, se não houver uma condenação judicial, não há impedimento legal para a contratação.
Políticos que mandam os recursos por meio de emendas, por sua vez, dizem que não possuem qualquer ingerência sobre como ou com quem o dinheiro será usado.
O auditor fiscal do trabalho e pesquisador Mauricio Krepsky
Ministério do Trabalho e Emprego/Divulgação
Um artigo publicado pelo auditor-fiscal do trabalho e pesquisador Maurício Krepsky e pela professora da UFMG Lívia Miraglia em 2024 apontou quão difícil é obter uma condenação judicial que impeça empresas de conseguir contratos públicos após serem flagradas com trabalho escravo.
Ao analisar dados de relatórios de fiscalização entre 2019 e 2021, constataram que apenas 5% dos casos levaram a uma ação civil pública, que poderia resultar em condenação judicial.
A dupla argumenta que a melhor forma de coibir a participação dessas empresas em licitações seria impedir a contratação daquelas que estiverem na Lista Suja mantida pelo Estado, ou seja, já com base na decisão administrativa. A inclusão na lista, hoje, não é impedimento para participar de certames públicos.
"É muito difícil responsabilizar a empresa que está lá na ponta. A maioria das empresas terceiriza a produção. É um trabalho de formiguinha achar (o responsável)", diz Miraglia, que também é pós-doutora em direito e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas na UFMG.
"É um crime que compensa. É mais provável que trabalhadores sejam presos por crime de furto do que um empregador por escravizar pessoas."
Lívia Miraglia, pós-doutora em direito e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, na UFMG
Fernanda Mello/Divulgação/Arquivo pessoal
Como identificamos a relação entre pedreiras e obras públicas de pavimentação
Desde 2020 o governo federal passou a disponibilizar, em seu site, uma relação de relatórios de fiscalização por trabalho análogo à escravidão. Os documentos são atualizados sem uma periodicidade definida e existem alguns anos cujos relatórios não foram divulgados.
A BBC News Brasil baixou e arquivou em um só repositório todos os autos de infração presentes na página - cerca de 2,8 mil documentos – e então os hospedou em uma ferramenta chamada Google Pinpoint. O Pinpoint permitiu fazer buscas textuais em todos os arquivos ao mesmo tempo.
Após criar o repositório, foram feitas buscas por palavras-chave relacionadas a pedreiras, até chegar somente aos casos relacionados à pavimentação. Estes autos foram lidos individualmente em busca de menções a empresas ou qualquer evidência de negócios com o poder público.
Também foram usadas outras fontes de informação, como o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, mais conhecido como Lista Suja, e documentos obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.
Um último passo foi fazer buscas nos portais de transparência de órgãos públicos em buscas de contratos dos últimos cinco anos – nem todas as cidades buscadas dispunham de dados atualizados.
Como nem todos os relatórios foram divulgados pelo governo federal, e nem todos os casos apuram o destino das pedras produzidas, não é possível dizer que o levantamento da reportagem represente todo o universo de infrações.
Também não é correto afirmar que todas as obras públicas das empresas citadas usaram pedras obtidas com trabalhadores em condições degradantes, já que os relatórios não especificam, na maioria dos casos, a quantidade de pedras vendidas, a frequência das vendas ou as obras relacionadas.
Imagens feitas por Vitor Serrano, jornalista de vídeo da BBC News Brasil.
Gráficos feitos por Caroline Souza, Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil.
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